As experiências de um médico estrangeiro em terras tucujus
Javier Salazar, um dos profissionais do Programa Mais Médicos, do Governo Federal, conta os desafios de atuar na Amazônia brasileira
O juramento professado pelos médicos quando formados diz que o profissional deve dedicar a vida em benefício dos doentes. Ainda assim, no Brasil há alguns anos atrás, haviam mais de 18 mil vagas no sistema público de saúde aguardando pelos médicos brasileiros. A falta de profissionais era registrada em unidades básicas de saúde nas localidades distantes de grandes centros urbanos, regiões preteridas por médicos nacionais.
Javier Salazar, médico cubano, em atendimento a pacientes
Crédito: Arquivo pessoal
As vagas foram ocupadas por médicos estrangeiros desde 2013, através do Programa Mais Médicos do Governo Federal. Um dos profissionais a ocupar estas vagas é Javier Isbell Lopez Salazar, cubano de 42 anos com mais de dez anos de experiência no atendimento médico em seu país e no exterior.
Mais de 4 mil cidades e 34 distritos indígenas contam com os médicos estrangeiros. São profissionais de diversas nações, com destaque para Cuba. A ilha de governo comunista é alvo de críticas, já que recebe 75% do salário de cada médico cubano; o que gerou, inclusive, acusações de escravidão e xenofobia de setores da classemédica brasileira.
Entretanto, os mais de onze mil cubanos que desembarcaram no país superaram as críticas e, em boa parte dos casos, atendem as expectativas das populações atendidas . Jordeane Silva, 27, moradora do bairro Jardim Marco Zero, faz coro aos pacientes que elogiam os profissionais cubanos. “Sempre que me consultei com ela [Dra. Erlinie, médica cubana], foi compreensiva e simpática comigo. Muitos médicos brasileiros nem olham na sua cara, já ela nos dá total atenção”, diz.
Antônio Carlos Correia, médico brasileiro, também vê como positiva a chegada destes profissionais. “Os intercambistas foram chamados para preencher vagas em localidades carentes de serviços [...] Houveram ganhos em saúde com a ação dos intercambistas. Há dados animadores em vários estados, sobretudo naqueles como no nordeste, em que indicadores vergonhosos de mortalidade infantil melhoraram significativamente nos últimos 3 anos”, explica.
Javier, médico que trabalha em uma aldeia que fica a 4 horas de Oiapoque, diz que seus colegas já estão acostumados a este tipo de hostilidade nos países por onde passam. “Não há reação necessária [aos ataques xenófobos]. Viemos fazer nosso trabalho”, completa. Salazar, inclusive escolheu trabalhar em um DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena), pois lá suas habilidades seriam melhor aproveitadas: “Eu fiz residência em Medicina Geral Integral, que tem consigo cinco importantes especialidades: Cirurgia, Traumatologia, Ginecologia, Obstetrícia e Pediatria. [...] Tenho mestrado em Terapia Intensiva. Escolhi ir para uma área indígena também para obter mais conhecimento sobre plantas medicinais”. Após sua graduação e especialização em Havana, Javier foi trabalhar na Venezuela, por intermédio do governo de seu país e de um programa similar ao que o trouxe ao Brasil.
Formação de Médicos no país
Apesar da presença massiva de médicos estrangeiros, as diretrizes do Mais Médicos pretendem tornar nosso país autossuficiente. A maneira com a qual pretende tornar isto possível é investindo na formação de médicos nas universidades brasileiras. Segundo o site do Programa, mais de 5 mil vagas de graduação em Medicina foram criadas desde seu pontapé inicial.
Anneli Celis de Cárdenas, cidadã peruana e Coordenadora do Curso de Enfermagem da UNIFAP, entende que o papel da Universidade na formação do profissional de saúde é criar “antes de tudo uma relação amistosa, de respeito, cordialidade e, principalmente, em que a escuta dos anseios, desejos, demandas e sentimentos do paciente e de seus familiares seja possível”.
Apesar do incentivo governamental para a formação de mais médicos, é necessário atentar-se à quantidade de recursos disponíveis para isto. “O curso de medicina da Universidade Federal do Amapá alcançou o nível 3 no conceito de avaliação do MEC recentemente, porém as necessidades são muitas para o grande número de alunos que cada ano aumenta nos processos seletivos”, ressalta a coordenadora do Curso de Enfermagem.
Condições de trabalho
Trazer médicos para resolver provisoriamente a falta de profissionais é um passo importante. O desafio, no entanto, é melhorar as condições de trabalho na rede de saúde. Nas unidades de atendimento em que estão lotados, os médicos cubanos sentem na pele a mesma realidade de seus colegas brasileiros. Em épocas específicas, quando há o fim de um contrato e uma nova licitação, por exemplo, até remédios para diabetes somem das prateleiras do Posto Médico Central da etnia Palicu, no norte do estado. Soma-se a isso, a estrutura em parte deteriorada do local. Apesar de uma licitação realizada pela FUNAI (Fundação Nacional do Índio) para reforma do local de atendimento, a empresa vencedora desistiu do contrato.
Os Palicus, população doutrinada por uma religião evangélica, hoje não possuem mais pajés nem acreditam mais nos poderes das plantas. Javier, que trabalha junto a eles, relata grande dificuldade na realização do diagnóstico, especialmente nas mulheres: “Elas chegam no consultório e sentam-se viradas de lado ou de costas para nós, são tímidas. Pergunto os sintomas, e me respondem somente o que mais se destaca. Busco investigar se há algum adicional, mas sempre negam. É comum retornarem dois ou três dias depois com outros sintomas, que estavam presentes desde o início.”
Entretanto, os desafios de Salazar não se encerram aí. É necessário realizar atendimentos nas aldeias periféricas, no mínimo meia hora de voadeira (barco) da aldeia central. O médico busca implantar na DSEI a medicina preventiva, popular em seu país, mas os costumes brasileiros e indígenas por vezes causam dificuldade. Nada que o impeça de seguir influenciando as aldeias em suas visitas regulares, mesmo quando não há doentes. Há duas equipes que revezam o atendimento à etnia, cada grupo fica vinte dias corridos na aldeia, enquanto o outro descansa na cidade. O cubano ainda recebe auxílio alimentação da Prefeitura Municipal de Oiapoque, mas relata que muitos colegas em outras cidades têm de se contentar apenas com o vencimento básico divulgado no edital.
Médico Salazar desbrava os rios da Amazônia para atender seus pacientes
Crédito: Arquivo pessoal
Viver longe de casa não é novidade. Antes de chegar ao Brasil, Javier esteve por nove anos da Venezuela; seis como médico geral integral, três como especialista em tratamento intensivo. Seus familiares, especialmente os dois filhos, sentem saudade. Entretanto, compreendem a emigração como forma de viverem um pouco melhor na ilha, já que do valor que recebem, os cubanos ainda destinam generosa parcela para suas famílias.
Os desafios Muitos graduandos em Medicina, ou mesmo médicos formados, guiam-se pelo status da profissão. Segundo a Revista Exame, médicos são os profissionais mais bem pagos do país. Os médicos de maior salário trabalham com atendimentos particulares, muito distantes da realidade a que são submetidos os médicos estrangeiros (e mesmo brasileiros) que trabalham em regiões interioranas e em bairros periféricos nas capitais.
Segundo o médico Antônio Correia, problemas como desgaste emocional e a falta de condições de trabalho são os principais problemas que atingem os profissionais na rede pública de saúde. Esse é um fator que ajuda a explicar a preferência de parte dos médicos pelo serviço particular. Entretanto, o fato de não possuírem todos os recursos para exercerem sua profissão, não exime os médicos de se fazerem presentes no serviço público, segundo Correia. “Enquanto se planeja como fazer da melhor forma (em relação à estrutura e condições de trabalho), muita gente morre, ou adoece, ou fica inválido, portanto vamos fazer o que podemos e melhorar”.
A professora Anneli Cárdenas entende que é necessário acostumar os novos profissionais de saúde que estão se formando à realidade da população mais carente. “Acho que o Ministério de Saúde junto ao Ministério de Educação deveria estabelecer programas obrigatórios para os profissionais de saúde que se graduam atuarem em serviços profissionais, especialmente em cidades mais pobres e vulneráveis”,diz. Segundo a enfermeira, isso já acontece em seu país de origem, o Peru.
O médico cubano Javier Salazar confirma com este pensamento. “É um problema cultural. Acho necessário [que médicos brasileiros ocupem vagas como a minha no futuro], mas difícil que o Brasil consiga preencher com seus médicos todas estas vagas em municípios ribeirinhos. Porque, infelizmente, para muitos a ideia é ‘vou me formar em Medicina para ganhar dinheiro’. Para ir a um município de interior tem-se que ir com o objetivo de salvar vidas, não para ganhar dinheiro”, aponta Javier. O modelo de medicina cubana é destaque porque a medicina tem uma função pública compreendida desde cedo pelos profissionais de saúde. “Em Cuba, os médicos não têm ótimos salários e somente uma minoria atende fora do sistema público de saúde. Lá, o ideal de servir à sociedade como promotor da saúde antepõe-se aos benefícios financeiros”, relata.