Vítimas de escalpelamento enfrentam traumas e preconceito
- Ana Cleide, Trindade Torres e Lidiane Rosa Alves
- 20 de jan. de 2015
- 5 min de leitura
Mulheres e crianças ribeirinhas são as mais vulneráveis ao problema; tratamento lento e doloroso compromete saúde física e emocional de escalpelados

Apesar da fiscalização da Marinha do Brasil, acidentes ainda acontecem com frequência nos rios da região
Crédito: Marinha do Brasil
Rosinete Serrão tinha 20 anos quando seu cabelo prendeu no eixo do motor e ocorreu o escalpelamento. Ela estava voltando de uma festa em família e vinha dormindo no barco perto do motor sem cobertura quando aconteceu o acidente. “Meu cabelo que era muito longo arrancou todo. Foi só um choque, um tombo muito forte”, conta.
O caso de Rosinete Serrão é um exemplo de como o escalpelamento acontece. Os cabelos são arrancados depois de se prenderem ao eixo do motor das embarcações. Há casos em que as orelhas e as sobrancelhas também sofrem mutilações.
Apesar de existir lei para prevenir o problema, os acidentes nao param de acontecer no Amapá. As vítimas sofrem sequelas físicas e emocionais, e o tratamento, além de doloroso, é demorado.
Geralmente, o acidente acontece quando o barco fica alagado e os passageiros precisam tirar o excesso de água de dentro da embarcação. Basta um descuido aliado ao balanço do barco para os cabelos serem puxados pelo motor.
A maior parte das vítimas é de mulheres e crianças do sexo feminino, moradoras de áreas ribeirinhas que utilizam o barco como meio de transporte diário.
A vítima de escalpelamento passa de 2 a 6 meses internada no hospital para tratamento e reconstrução do couro cabeludo, com cirurgias plásticas e enxerto.
A cicatrização dura, em média, 2 anos, período em que a paciente precisa ir todos os dias ao posto de saúde para trocar o curativo além de fazer consultas quinzenais.
Rosinete Serrão conta que, na época em que foi vítima do acidente, precisou ficar internada quase 3 meses. Ela passou por duas cirurgias, e, como última etapa, o enxerto, com a retirada de partes da pele da coxa para implantar na cabeça.
“Foi um ano e meio para cicatrizar. Eu vivia todo dia no posto de saúde, fazendo curativo, tomando vários medicamentos para não ter rejeição do implante de pele na minha cabeça”, relata Rosinete.

Flagra de um barco sem a proteção do eixo do motor no Igarapé da Fortaleza, na Fazendinha, distrito de Macapá
Crédito: Lidiane Rosa
Uma das consequências para as vítimas do escalpelamento no Amapá é a necessidade de mudar de residência e morar na casa de parentes para fazer o tratamento, que só é ofertado em Macapá. As vítimas também enfrentam os preconceitos da sociedade e se isolam. Crianças e jovens param de estudar e outras vítimas sequer conseguem emprego.
As marcas no corpo e o preconceito da sociedade não são os únicos problemas enfrentados pelas vítimas de escalpelamento. O maior drama é lidar com as consequências psicológicas, tais como a baixa autoestima e a depressão.
Rosinete explica que quando teve consciência do acidente, começou a se preocupar. “Naquele momento o meu pensamento foi que a minha vida tinha acabado”, diz Rosinete.
A psicóloga Rosimari Leitão, que já participou de campanhas em áreas ribeirinhas e atendeu várias vítimas de escalpelamento, explica que uma das consequências na vida social das vítimas é o isolamento causado pelo medo de se mostrar a outras pessoas.
Rosimari afirma que uma forma de tratamento para melhorar a autoestima das vítimas é enfatizar que elas podem usar as perucas, passar maquiagem e usar acessórios.
“Trabalhamos com as vítimas essa questão, fazendo com que elas enxerguem outros meios, outras possibilidades de buscarem a vaidade”, explica a psicóloga.
A maioria das vítimas tem receio de procurar um psicólogo. “A gente acaba sendo psicólogas uma da outra. É mais fácil elas se abrirem comigo do que com uma profissional”, explica Rosinete.
Segundo a psicóloga Rosimari Leitão, há mulheres que não superam o trauma e desenvolvem a depressão e o stress pós-traumático.
Organização política
Como forma de lutar pelos direitos das vítimas foi criado em 2007 a Associação de Mulheres Ribeirinhas e Vítimas de Escalpelamento. A proposta da associação é combater o problema na Amazônia, que ocorre desde a década de 60.
Segundo a presidente da Associação, Rosinete Serrão, a estratégia é fazer campanhas de prevenção ao escalpelamento, trabalhando permanentemente junto à Marinha do Brasil, representada no Estado pela Capitania dos Portos, no município de Santana, responsável pelo trabalho de cobertura de eixo do motor nas embarcações.
Segundo a presidente Rosinete “a associação atua conjuntamente com as secretarias do Governo do Estado para divulgar e fazer ações nos igarapés do Amapá”. Atualmente, a associação conta 120 membros.
Lei federal não evita escalpelamento

Palestra sobre prevenção de acidentes são realizados pela Marinha para alertar os perigos sobre o eixo do motor sem proteção
A lei federal n° 11.970, aprovada em 2009, obriga o uso da proteção no motor, eixo e partes móveis das embarcações.
Mesmo existindo legislação para coibir o problema, ainda há registros de casos de escalpelamento. A dificuldade é convencer os proprietários a instalarem os equipamentos. Dados da Capitania dos Portos revelam que, entre 2009 e 2014, 18 casos de escalpelamento foram registrados no Amapá e na região das ilhas do Pará.
De acordo com o tenente da Marinha, Fabiano Crespo, alguns casos não são registrados porque os proprietários das embarcações temem ser responsabilizados pelo acidente.
O tenente afirma que, em alguns desses casos, a informação chega através de denúncia dos médicos, após o paciente ser hospitalizado com características de acidente causado pelo eixo do motor.
As fiscalizações são realizadas durante todo o mês por equipes de Inspeção Naval, formada por militares. O trabalho é feito através de patrulhamento e inspeção nas embarcações e os principais pontos são a orla de Macapá e Santana. A jurisdição da Capitania dos Portos é de 16 municípios no Amapá e 9 no estado do Pará, área com aproximadamente 1.211 barcos registrados.
A Capitania dos Portos informa que todos esses casos ocorreram em áreas distantes de sua jurisdição, onde as famílias têm o barco como meio de sobrevivência.
Quando perguntado sobre os motivos de a fiscalização não alcançar as localidades mais distantes, o tenente explica a dificuldade da Marinha em dialogar com os donos das embarcações, que temem perder os barcos por estarem em situação irregular.
“A gente faz questão que a cobertura do motor do eixo seja instalada. A embarcação dele não vai ser presa naquele momento”, esclarece o tenente Fabiano Crespo.
Outro problema apontado pela Capitania dos Portos é a ação ilegal de alguns proprietários que vendem a cobertura do eixo do motor para outros ribeirinhos. Por lei, a proteção é instalada gratuitamente.
Instalação
O tempo necessário para instalar a cobertura do eixo do motor é de 40 minutos. O proprietário deve procurar a Capitania dos Portos e não é obrigado a apresentar nenhuma documentação.
A Capitania dos Portos reforça que embarcações pequenas também devem ter a cobertura do eixo do motor, pois elas são as mais utilizadas no interior do Estado.
Nas embarcações pequenas o risco de acidentes é maior, porque em situações onde o barco alaga, a retirada da água pelos passageiros os aproxima do motor, aumentando os riscos de acidentes.
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